sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Infernos (Parte 3)

No dia seguinte, logo de manhã já tivemos algumas pistas de que as coisas ainda não estavam lá muito boas. Acordamos cedo e decidimos ir para o aeroporto o mais cedo possível; se o check-in começava ao meio-dia, seríamos os primeiros por lá. Logo que fui recolher os 110 kgs de bagagens, não mais encontrei os carrinhos para o transporte de malas, que ainda na noite anterior povoavam aos borbotões as redondezas e mesmo os corredores do hotel. O Ibis Orly fica bem próximo do terminal sul do aeroporto, e para nos deslocarmos até lá teríamos que pegar novamente o ônibus que liga os dois terminais. Pelos 110 kgs e mais as duas mochilas, fizemos duas viagens até o ponto do ônibus. Durante a segunda, uma chuva leve começou.

Pouco depois descarregamos tudo novamente em Orly Sud. No caminho até o guichê, e apesar de todo movimento do aeroporto, lembrava calmamente do desespero e da corrida de bagagens encenadas no dia anterior sem no entanto imaginar toda urucubaca que ainda viria. Era certo que pagaríamos excesso de bagagens e para minimizar o problema, decidimos fazer separadamente o check-in, pois assim evitaríamos que as malas menores fossem pesadas e obviamente impedidas de seguir para a cabine. Assim, enquanto um de nós despachava duas das super malas, o outro aguardava com as outras, para que depois pudesse repetir o procedimento. Das primeiras malas embarcadas, veio a conta: cinqüenta euros pelo excesso. Era realmente pouco perto do que imaginávamos. No entanto fomos impedidos de pagá-la: o guichê responsável pela cobrança havia sido evacuado, assim como toda metade ocidental do saguão do aeroporto. Como se não bastasse a suspeita de bomba, todo aquele povo que estava do outro lado foi convidado pelos policiais a se sociabilizar conosco, do lado oriental do salão. Alguns ali não ficaram muito contentes e preferiram deixar o saguão abafado para que fossem melhor purificados pela tempestade que caía do lado de fora. Restava-nos ao menos a chance de nos livrarmos finalmente daquele "maleril" todo e foi o que fui fazer. A conferência de meus documentos foi curiosamente feita com enorme rapidez, e logo estava despachando as duas últimas malas king size, com a enorme surpresa de não estarem em sobrepeso. Antes que pudesse etiquetar minha mochila, o atendente, meio assustado, pediu que me retirasse logo. Havia outro colis suspect há alguns metros de nós - colis suspect significa (em 99% das vezes) um pacote de doce esquecido por alguém que vai ser responsável por manter o emprego do esquadrão anti-bombas francês e te causar algum tipo de atraso. Logo me ocorreu que o grupo ON FIRE da noite anterior buscava vingança. Se há alguns minutos atrás restava aos passageiros meio-Orly, agora deveríamos então nos contentar com um quarto de Orly. Espremidos no meio daquele calor humano e de todo perfume que os seres humamos exalam nessas condições, zombava maquiavélicamente dos problemas alheios: ao menos não estava do lado de fora, na chuva, e sobretudo ao menos não era uma daquelas pessoas que ainda sonhavam em despachar sua bagagem. O 'ao menos' ali foi superlativo como nunca. Logo ouvimos um dos estrondos. Assim que explodem uma bomba ou uma bagagem suspeita, as coisas tendem a voltar ao normal e o aeroporto enfim foi liberado, ao menos até que um próximo 'colis suspect' fosse encontrado. Antes do embarque, um último desconforto: meu nome foi chamado pelo sistema de som. Logo pensei em mais alguns bons problemas, mas no fim os responsáveis da companhia somente queriam finalizar meu check-in, que fora interrompido pelo segundo pacote suspeito do dia.

Se pensava que os infernos ocorriam somente na terra, enganei-me redondamente. Foi no céu que a coisa ficou feia. Ainda sobrevoávamos o Atlântico, mas segundo o painel do avião já estávamos bastante próximos do continente. O avião então começou a tombar como jamais vi antes. Antes que alertassem sobre a necessidade de cinto de segurança, um incauto que caminhava pelo corredo foi jogado pra cima, caindo sobre as pessoas que ocupavam os assentos da parte central do avião. O afinado coro dos passageiros - uma espécie de "AAAAIIIIII" e "OOOOHHHHH"coletivos - só era quebrado pelas risadas do bêbe sentado no colo da mãe aterrorizada ao lado. Não sei quanto tempo ficamos naquele 'balança mas não cai', mas tenho certeza que foi mais do que o suficiente. Fico tentando imaginar o que se passa nas cabeças dessas pessoas que morrem em grandes desastres. Talvez pensem em maridos e esposas, filhos, etc. Eu ali, além de não pensar em absolutamente nada, só constatava que estava num equipamento com centenas de toneladas a mais do que ar, o que não é nada reconfortante nessas horas. Se é possível resgatar alguma lembrança ou sentimento daqueles momentos eu traduziria por um enormíssimo 'FODEU'.

O avião acabou não caindo, mas pousou são e salvo em Montréal.

Já no táxi, rumo ao novo apartamento, o que mais via eram céus e autopistas. Depois de quase dois anos de Paris, aquela sensação toda de espaço me pareceu no mínimo estranha. Apesar de tudo e, sobretudo, depois de tanta desventura o entusiasmo com a nova vida era grande. Pois chegamos ao numero 7219 da rue Verdier. O apartamento era grande, se comparados com os padrões parisienses, mas também era grande a sujeira em que foi deixado: tufos de poeira deslizavam pela sala principal e pelos quartos e no banheiro, além da falta de um chuveiro e dos restos de sabonete grudados na saboneira, algumas teias de aranha dava o toque final na decoração. Sem mais forças para aquele dia, estendemos nosso colchão de ar na sala e resolvemos adiar o novo problema para o dia seguinte. Dormi muito mal, pois a cidade estava quente como o (...) inferno. Fazia 35 graus em Montréal.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Infernos (Parte 2)












Pois no meu segundo círculo encontrei argelinos on fire, carreguei algumas malas de 23 kg de mudança e perdi um vôo. Esse segundo inferno aconteceu há alguns dias atrás e durou bem mais do que uma só noite. Depois de quase dois anos vivendo em Paris, seguíamos para Montréal. Dito isso, sempre vem em seguida a pergunta "mas (com uma boa dose de reticências), que diabos você vai fazer lá?", que não cabe ser discutida nesse texto. De toda forma aprendi a responder coisas simples, como um "nem eu sei", que pode evitar a continuação do enfadonho diálogo, ou então dizer que vou me alistar na Polícia Montada Canadense, dar um sorriso e mudar de assunto. Pois como dizia, deixamos nosso apartamento parisiense para trás. Carregamos o taxi com quatro malas grandes (19kg, 25kg, 23kg, 29kg), duas menores (6kg e 8kg) e duas mochilas. Durante o percurso até Orly, ia olhando Paris supostamente a última vez como morador. Ia tranquilamente olhando e redesenhando a cidade, que raramente era vista de dentro de um automóvel. Agosto é o equivalente a janeiro para os brasileiros, e o trânsito não era lá muito tranquilo. Logo um motorista mais apressado conseguiu esbarrar seu retrovisor na lataria do nosso táxi. Passado o susto inicial, veio o ainda maior. O chofer desligou o carro para bater boca com o outro motorista, fechando praticamente o fluxo da autopista. O vôo era às quatro horas da tarde, isso aconteceu às duas e meia. Pensei em estapear o motorista e dizer que não era hora pr'aquilo, mas talvez perdesse ainda mais tempo. Enfim, foram mais de vinte e cinco minutos até que conseguíssemos enfim carregar outro taxi e partir. "Fodeu", eu pensava. Mas era ainda um "fodeu" ainda esperançoso, daqueles que gente tenta se auto enganar, pensando no pior, mas acreditando no melhor. Chegamos e descarregamos tudo em Orly Ouest. Como o e-ticket da companhia aérea (Corsair, da Ilha de Corsega, relativamente barata, nenhum desastre até então) não informava o terminal, consultei na rede mundial de computadores, a internet, e achei logo de cara que: à orly, il ya 2 aérogares : ORLY OUEST pour AF, iberia , tap air portugal et corsair.

Eram três e seis da tarde quando a informante do aeroporto me confirmou que estávamos enganados, e a Corsair estava operando no terminal sul. Ali o "fodeu" foi quase um xeque-mate, um gol de ouro ou um mata-leão. Mas corremos, carregamos os 110kg mais as mochilas no ônibus que liga um terminal ao outro. Chegando no Orly Sud, completamente tomado por passageiros, turistas e adjacências, corremos mais. Uma vez no inferno, nada é tão simples e a área de check in ficava no outro extremo do prédio. Praticamente montamos nos carrinhos de bagagens embalados e seguimos em disparada, tentando sempre não atropelar alguém, numa espécie de mistura de jogo de Atari com reality show. Eram três e trinta e cinco quando enfim o atendente da Corsair disse educadamente:

- Désolé, mais c'est impossible maintenant. L'avion va très bientôt partir et je ne peut rien faire pour vous aider. (O que quer dizer mais ou menos: - Amigo, fodeu de verdade pra vocês. Sinto muito, mas eu sou francês e não vou fazer absolutamente nada pra te ajudar. Cada um com seus problemas.)

Saímos dali desolados e estafados. Já que era tudo um inferno, a única coisa que me ocorria era um daqueles pensamentos perversos: se esse avião cair não venham me procurar para a tradicional entrevista do passageiro que se salvou, seus filhos da puta...

Sem outro vôo possível - o único ainda naquele dia, além de sair do Charles de Gaulle, custava por volta de quatro mil euros - conseguimos remarcar vôo para o dia seguinte, com uma multa adicional de cento e oitenta euros para o casal. Fomos então para o hotel mais próximo, um Ibis. Santo são os empresários que exploram o inferno dos outros e instalam hotéis low-cost por perto dos infortúnios alheios. Com o hotel vazio e calmo, deixamos as malas no guarda volumes do térreo e fomos enfim descansar no quarto cento e cinquenta. Um pouco mais tarde, para aplacar tanta tensão, resolvemos descer até o bar para comermos e bebermos algo. La embaixo, nova evidência de que o inferno, por mais que seja os outros, nos queria também por perto. Um calor inacreditável, gritaria, discussão, polícia e um grupo de maioria argelina completamente ON FIRE. O que consegui ouvir de solslaio é que o grupo teve seu vôo cancelado, o resto é mera especulação; mas para que a polícia estivesse ali, devem ter quebrado alguma coisa ou alguém. Chegando ao bar o garçom nos deu as boas vindas:

- Si vous voulez manger, il faut attendre beaucoup. (Que quer dizer mais ou menos: - Amigo, olha esse bando de argelino me perturbando. Você acha que eu to com o saco pra te servir alguma coisa?)

Brasileiros como nunca, ficamos ali esperando assim mesmo, pois não desistimos nunca, nem no masoquismo. Obviamente que comemos muito mal. Subimos e fomos assistir ao penúltimo capítulo da primeira temporada do 24 horas. Admito que me senti mais próximo de Jack Bauer do que nunca.


sábado, 1 de agosto de 2009

Infernos (Parte 1)

À exceção de quando viajo de avião, nunca estive no céu. Tampouco andei pelo inferno. Enfim, inferno ou céu, ambas fazem parte desse conjunto de construções simbólicas para se dar conta da vida - ao menos para suportar o que vem depois. Se existem eu realmente ainda não sei. No entanto, cada um tem a sua idéia do que possa ser um ou outro. Nesse sentido, eu posso assegurar que o capeta é meu amigo quase irmão, e isso pode ser, às vezes, um pouco complicado. Estamos em agosto, e em menos de dois meses acho que essa acabei recebendo sua visita ao menos duas vezes. Na primeira das ocasiões eu estava na Espanha. Queria somente descansar, depois de um agradável mas longo e cansativo dia de turismo. Acabei passando a noite em claro. Ele, que lá era ela, estava completamente embriagado e passou o resto da noite entoando histericamente algumas litanias. Litanias que só depois descobri serem de autoria do Balão Mágico (ou Trem da Alegria). Enfim, isso foi no começo de junho. Posso garantir que se encontrar no inferno não rende tanto o medo, mas deixa a gente bem puto da vida.