No dia seguinte, logo de manhã já tivemos algumas pistas de que as coisas ainda não estavam lá muito boas. Acordamos cedo e decidimos ir para o aeroporto o mais cedo possível; se o check-in começava ao meio-dia, seríamos os primeiros por lá. Logo que fui recolher os 110 kgs de bagagens, não mais encontrei os carrinhos para o transporte de malas, que ainda na noite anterior povoavam aos borbotões as redondezas e mesmo os corredores do hotel. O Ibis Orly fica bem próximo do terminal sul do aeroporto, e para nos deslocarmos até lá teríamos que pegar novamente o ônibus que liga os dois terminais. Pelos 110 kgs e mais as duas mochilas, fizemos duas viagens até o ponto do ônibus. Durante a segunda, uma chuva leve começou.
Pouco depois descarregamos tudo novamente em Orly Sud. No caminho até o guichê, e apesar de todo movimento do aeroporto, lembrava calmamente do desespero e da corrida de bagagens encenadas no dia anterior sem no entanto imaginar toda urucubaca que ainda viria. Era certo que pagaríamos excesso de bagagens e para minimizar o problema, decidimos fazer separadamente o check-in, pois assim evitaríamos que as malas menores fossem pesadas e obviamente impedidas de seguir para a cabine. Assim, enquanto um de nós despachava duas das super malas, o outro aguardava com as outras, para que depois pudesse repetir o procedimento. Das primeiras malas embarcadas, veio a conta: cinqüenta euros pelo excesso. Era realmente pouco perto do que imaginávamos. No entanto fomos impedidos de pagá-la: o guichê responsável pela cobrança havia sido evacuado, assim como toda metade ocidental do saguão do aeroporto. Como se não bastasse a suspeita de bomba, todo aquele povo que estava do outro lado foi convidado pelos policiais a se sociabilizar conosco, do lado oriental do salão. Alguns ali não ficaram muito contentes e preferiram deixar o saguão abafado para que fossem melhor purificados pela tempestade que caía do lado de fora. Restava-nos ao menos a chance de nos livrarmos finalmente daquele "maleril" todo e foi o que fui fazer. A conferência de meus documentos foi curiosamente feita com enorme rapidez, e logo estava despachando as duas últimas malas king size, com a enorme surpresa de não estarem em sobrepeso. Antes que pudesse etiquetar minha mochila, o atendente, meio assustado, pediu que me retirasse logo. Havia outro colis suspect há alguns metros de nós - colis suspect significa (em 99% das vezes) um pacote de doce esquecido por alguém que vai ser responsável por manter o emprego do esquadrão anti-bombas francês e te causar algum tipo de atraso. Logo me ocorreu que o grupo ON FIRE da noite anterior buscava vingança. Se há alguns minutos atrás restava aos passageiros meio-Orly, agora deveríamos então nos contentar com um quarto de Orly. Espremidos no meio daquele calor humano e de todo perfume que os seres humamos exalam nessas condições, zombava maquiavélicamente dos problemas alheios: ao menos não estava do lado de fora, na chuva, e sobretudo ao menos não era uma daquelas pessoas que ainda sonhavam em despachar sua bagagem. O 'ao menos' ali foi superlativo como nunca. Logo ouvimos um dos estrondos. Assim que explodem uma bomba ou uma bagagem suspeita, as coisas tendem a voltar ao normal e o aeroporto enfim foi liberado, ao menos até que um próximo 'colis suspect' fosse encontrado. Antes do embarque, um último desconforto: meu nome foi chamado pelo sistema de som. Logo pensei em mais alguns bons problemas, mas no fim os responsáveis da companhia somente queriam finalizar meu check-in, que fora interrompido pelo segundo pacote suspeito do dia.
Se pensava que os infernos ocorriam somente na terra, enganei-me redondamente. Foi no céu que a coisa ficou feia. Ainda sobrevoávamos o Atlântico, mas segundo o painel do avião já estávamos bastante próximos do continente. O avião então começou a tombar como jamais vi antes. Antes que alertassem sobre a necessidade de cinto de segurança, um incauto que caminhava pelo corredo foi jogado pra cima, caindo sobre as pessoas que ocupavam os assentos da parte central do avião. O afinado coro dos passageiros - uma espécie de "AAAAIIIIII" e "OOOOHHHHH"coletivos - só era quebrado pelas risadas do bêbe sentado no colo da mãe aterrorizada ao lado. Não sei quanto tempo ficamos naquele 'balança mas não cai', mas tenho certeza que foi mais do que o suficiente. Fico tentando imaginar o que se passa nas cabeças dessas pessoas que morrem em grandes desastres. Talvez pensem em maridos e esposas, filhos, etc. Eu ali, além de não pensar em absolutamente nada, só constatava que estava num equipamento com centenas de toneladas a mais do que ar, o que não é nada reconfortante nessas horas. Se é possível resgatar alguma lembrança ou sentimento daqueles momentos eu traduziria por um enormíssimo 'FODEU'.
O avião acabou não caindo, mas pousou são e salvo em Montréal.
Já no táxi, rumo ao novo apartamento, o que mais via eram céus e autopistas. Depois de quase dois anos de Paris, aquela sensação toda de espaço me pareceu no mínimo estranha. Apesar de tudo e, sobretudo, depois de tanta desventura o entusiasmo com a nova vida era grande. Pois chegamos ao numero 7219 da rue Verdier. O apartamento era grande, se comparados com os padrões parisienses, mas também era grande a sujeira em que foi deixado: tufos de poeira deslizavam pela sala principal e pelos quartos e no banheiro, além da falta de um chuveiro e dos restos de sabonete grudados na saboneira, algumas teias de aranha dava o toque final na decoração. Sem mais forças para aquele dia, estendemos nosso colchão de ar na sala e resolvemos adiar o novo problema para o dia seguinte. Dormi muito mal, pois a cidade estava quente como o (...) inferno. Fazia 35 graus em Montréal.